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PLURAL: os textos de Juliana Petermann e Eni Celidonio

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De fake news a currículo fake

Juliana Petermann 
Professora universitária

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Um doutor sem doutorado; uma advogada e mestre em educação sem títulos; um mestre em direito sem mestrado; um ministro anunciado como doutor sem doutorado; um doutor sem tese, com pós-doutorado duvidoso e com indícios de plágio. Embustes sobre a vida acadêmica não são uma novidade na vida política, mas, nos últimos meses, viraram rotina. Curioso é que os títulos "fictícios" são acionados por pessoas que têm pouco apreço à universidade e à ciência. São títulos invocados por quem flerta com o negacionismo e com o obscurantismo. É controverso: ao mesmo tempo em que procuram desmantelar a vida acadêmica, a desejam. Mas não basta apenas dizer-se mestre ou ser apresentado como doutor. Não basta tampouco acrescentar inverdades ao Currículo Lattes.

CIÊNCIA EXIGE DEDICAÇÃO E TEMPO

A carreira acadêmico-científica é feita de esforços, na maioria das vezes. Inicia com um curso de graduação, que dura de 4 a 5 anos e que resulta em um trabalho de conclusão ou monografia. Depois, vem o mestrado, concluído em dois anos, cujo produto é uma dissertação. Na sequência, o doutorado, que se estende por 4 anos e tem como resultado uma tese. Por último, o pós-doutorado que, no Brasil, tem a duração de dois anos e consiste em uma pesquisa aplicada, com seus relatórios e artigos. São, pelo menos, 12 anos para que se atinja o topo da formação acadêmica. Normalmente, anos de dedicação que exigem conciliar estudo e trabalho, com pouca ou nenhuma remuneração. Fazer ciência é cada vez mais difícil em nosso país e os entraves vêm sendo postos por personagens de um mesmo enredo: tem aquele que corta a verba da pós-graduação, tem quem difame a universidade com fake news e também tem aquele que se apresenta com um currículo inconsistente (ou seria um currículo fake?).

I Não é magia

É curioso pensar que, mesmo em meio a um cenário aterrador como o pandêmico que vivemos, ainda percebamos desapreço pela ciência. Desapreço representado por atitudes negacionistas como prescrever medicamentos sem eficácia comprovada ou desacreditar do poder da doença que assola o mundo. É também curioso perceber que, se de um lado temos o menosprezo à ciência, por outro, é nesse momento de desesperança que as pessoas recorrem a ela como se fosse possível resolver o problema em um passe de mágica. Ora, se é mágica, não é ciência. A ciência precisa de tempo, investimento e de uma sociedade que a legitime para resolver os problemas desta mesma sociedade.  

Sabe com quem está falando?
Eni Celidonio 
Professora universitária


style="width: 25%; float: right;" data-filename="retriever">Estava lendo um artigo em que Roberto DaMatta comentava um capítulo do seu livro Carnaval, malandros e heróis, eu diria o capítulo mais célebre de todos os seus livros, onde ele trata do "sabe com quem está falando?". Para o antropólogo, com a vinda de D.João VI e sua corte, em 1808, inaugura-se um sistema de superiores e inferiores culturais; "quem se acha 'alguém' coloca o outro no lugar de 'ninguém'". A partir da República [1889], muda-se o regime político, mas a sociedade não se livra dos costumes ou das matrizes ideológicas que moldavam o seu passado, uma sociedade que jamais discutiu privilégio e limite de privilégio.

Mas as coisas mudaram... Se antes o "sabe com quem está falando" era uma tentativa, em sua maioria bem sucedida, de colocar o outro no seu devido lugar, hoje, com a internet e as mídias sociais, a situação pode ser vista por milhões de pessoas, que dificilmente apoiam esse tipo de postura.

Pois bem... O livro completou quarenta anos em 2019 e, só esse ano, tivemos dois exemplos da teoria de se saber com quem se fala: no Rio, uma mulher se ofendeu porque o Guarda Municipal chamou seu marido de cidadão. Irritada, ela afirmou que o salário do fiscal da prefeitura saía do seu bolso, motivo pelo qual seu marido se considerava seu chefe e que o marido não era cidadão: "cidadão não... engenheiro formado, melhor do que você". Simples assim: ali não havia um cidadão, mas um engenheiro, o engenheiro estava no bar bebendo, não o cidadão... E o mais curioso foi o caso de um desembargador que, sem máscara, ao ser autuado, não contente em ligar para o secretário de segurança e chamar o guarda de analfabeto, rasgou a multa e jogou no chão.

O FILHO DO DESEMBARGADOR

Pois eu vou pegar carona e falar de 1972, antes do livro do DaMatta, numa prova oral de Direito Internacional Público. Na Faculdade não havia o sistema de semestre, era anual. Somadas as notas do ano, tinha que dar média sete ou mais. Caso contrário, fazia-se segunda época. Caso não se conseguisse média sete, ia-se para a prova oral. Em último caso, só sobrava a dependência.  

A cena era a seguinte: salão nobre da Faculdade Nacional de Direito, aberto para quem quisesse assistir, ou seja, apinhado de gente. Na banca, Haroldo Valladão (catedrático de Direito Internacional), Celso de Albuquerque e Melo (adjunto) e o assistente, que eu não me lembro mais quem era. A vítima subia num tablado, chegava à mesa e sorteava o ponto num saquinho de pano vermelho nas mãos do assistente. O silêncio era constrangedor. Um colega nosso, filho de desembargador, é chamado e sobe para o sorteio. O professor Celso começa:

- Meeeeeeu fiiiiilho, qual o paíiiiis que está em neutralidade na ONU?

Silêncio total...

- Meeeeeeu fiiiiiilho, é o país que fabrica o melhor chocolate do mundo!

O silêncio continua...

- Meeeeeu fiiiiiilho, é o país que fabrica o melhor relógio do mundo!

Nada...

- Meeeeu fiiiilho, é a Su...?

- Écia, responde a criatura...

Hoje, acredito que a plateia desabaria em gargalhadas, mas nós suávamos frio, que podia ser que estivéssemos naquela situação no próximo ano, vai saber...

E aí aconteceu o que ninguém esperava. O aluno, ao invés de sair de fininho, resolveu dar a última cartada:

-Professor Celso, o senhor sabe quem eu sou? Meu pai é desembargador!

E o professor Celso, com aquela calma peculiar, com o cachimbo pendurado nos lábios, responde:

- Claaaaaaro que seeeeei! Você é filho do desembargador Bandeira Estampa e que, aliááááás, além de não aprender nada com ele, acha que o Direito se fundamenta na dinastia!

Ficou em dependência...

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